Estou do lado de fora da sala e agora escrevo durante os dez minutos dados aos seis alunos presentes no nosso encontro de hoje para eles se prepararem para me mostrar 'o teatro deles'. É que quero ver o que é isso que eles estão chamando de "teatro de verdade": aquele que de dez em dez minutos eles me perguntam quando é que nós vamos fazer.
Eu entendo essa ansiedade: eu também já provei dela, na idade deles, quando ingressei no curso de iniciação teatral, há dez anos, na ARCA (Associação de reintegração da criança e do adolescente), em Betim. Queria saber quando começaríamos a fazer cenas, decorar textos, usar figurino, chamar pai e mãe para ver nossas apresentações, ouvir os aplausos e no outro dia fazer tudo de novo. "Tanta brincadeira pra que?", talvez eu me perguntasse naquela primeira fase de jogos teatrais, "Vamos fazer teatro logo!"
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O dia em Betim começou assim, abafado - por causa e apesar da chuva do final de semana. Amanheceu mais cedo: é a primeira segunda do horário de verão! Dureza... Dormi pouco nessa noite. Acordei às quatro porque tinha o projeto de ocupação do teatro João Ceschiatti (BH) para escrever. Tentei fazer algo até a hora que dava e saí correndo, rumo à Betim. Não consegui pegar o ônibus que me deixa na porta da escola, o 7430. Peguei o 3293, que me deixa longe, lá na BR. Vim cochilando. Durante o percurso que realizei do lugar onde desci até a escola, repassei o plano de aula: Começaria com um jogo, uma espécie de "E se..":
e se estivéssemos caminhando lá na lua, ou dando passos de gigantes... E se estivéssemos correndo de uma fera, ou andando bem devagar para que ela não percebesse nenhum dos nossos movimentos. Como é caminhar sem querer ser notado por um bicho sedento por nos devorar? Como é fugir desse bicho, em desespero? O que muda no corpo da gente?
E por aí iríamos.
De acordo ainda com as minhas propostas para o dia - e como havia ficado acertado na última conversa com o Charles - hoje eu apresentaria para os meninos as obras d'Os gêmeos. Em seguida, faríamos uma primeira improvisação a partir das imagens dos grafiteiros. Qual tipo de improvisação? Com fala ou sem fala? Quadros vivos? Isso eu descobriria no momento, com eles, tentando entender para onde o vento da disponibilidade dos meninos soprava.
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9h25: Deividson é o único menino presente. O Thierry - acho que é assim mesmo que o colega dele chama - hoje não quis/pode vir, o Deividson me conta. Hoje era natação na "escola da gente" e ele não quis perder.
Rio por dentro: "escola da gente" é o nome escolhido para batizar o modelo de educação integral, adotado pelo governo municipal anterior. Não sei exatamente quantas crianças o projeto atendia, mas sei dos duzentos meninos atendidos ali no Adelina versus os talvez nem setenta participantes dos dias de hoje. Extinguir a "Escola da gente" foi um dos primeiros atos do prefeito Carlaile Pedrosa (PSDB) ao assumir, pela terceira vez, a prefeitura. Prometeu, na época da eleição, reformular a proposta e ampliar o programa para mais crianças, em outras escolas: de fato ele reformulou. Se antes as artes tinha lugar garantido na grade curricular dos meninos, hoje ela nem passa perto. Numericamente também são bem menos crianças atendidas pela proposta. Como já disse, nem metade da metade da metade. A infraestrutura continua precária, quase inexistente. Pelo que sei, hoje os alunos tem aula de esporte e reforço escolar. Ao meu ver, acabaram com o "Escola da Gente". Essa mania porca dos governistas de jogar a água da bacia fora com o bebê lá dentro. Espera! Eu disse acabaram? (é por isso que rio por dentro). Em tese sim, destruíram. Mas aquele velho programa - tão criticado, mas ao meu ver tão mais interessante - continua existindo no imaginário dos alunos... "Hoje ele foi nadar no escola da gente".
Chegam as outras meninas e a sala está muito suja, desarrumada: peço para Bia buscar vassouras - ela consegue duas - e começamos a organizar o espaço. Não é normal o auditório estar sujo assim, mas hoje é o primeiro dia de aula após uma semana de recesso e por isso tanta sujeira. As meninas da limpeza ainda não haviam passado por aquela sala. Sem problemas, nós limpamos: já é a primeira atividade coletiva da turma e uma forma de nos reconectar com os encontros anteriores - como é que essa sala fica organizada para a aula de teatro mesmo?
Por falar em reconectar, já em roda, peço para Beatriz nos mostrar o seu registro: é o primeiro no nosso "caderno-de-artista-ainda-sem-nome". Eles me contam: "ainda vamos decidir como ele vai se chamar". A Bia então nos mostra o seu feito: três linhas escritas com uma caneta azul e um palhaço cachorro desenhado no final. Se eu bem me lembro estava escrito: "As aulas tem sido muito boas e eu não tenho nada a reclamar." E, em seguida, o palhaço-meio-palhaço-mas-também-meio-cão. Pergunto quem gostaria de fazer o registro da aula de hoje e... silêncio. Pergunto novamente, ninguém se voluntaria, eles olham uns para os outros, riem, silêncio e a Monique toma a palavra: "eu levo!"
Penso: no dia que ninguém quiser levar, nós professores levamos e registramos. (?!)
Mas não é um caderno deles?!
Uma interferência nossa já muda tudo de figura: passa a ser um caderno "nosso", não sei...
Des-penso.
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Ai que sono!
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Temos um som!
Não nosso, do projeto: é um emprestado pela escola. Com entrada USB. Meio complicado e pouco burocrático para funcionar, ler as pastas do meu MP4. Não consegue reconhecer os arquivos do meu celular. Logo hoje que trouxe o álbum de um artista chamado Parov Stelar, super dançante... Não leu. Mas tocou o bom e velho Yann Tiersen - presença garantida entre as minhas trilhas de dia de aula. Para o próximo encontro eu posso levar um Tom Zé, um Barbatuques, o próprio Parov Stelar... Mas no MP4.
Sugiro: vamos deitar no chão?
Eles se recusam.
Também pudera: apesar de varremos a sala, faltou passar um pano, mas aí não daria tempo. Agora escrevendo, penso que deveria ter dado-tempo ao pano sim. Era a continuidade da nossa primeira atividade coletiva e uma aproximação maior do nosso "lugar ideal" para fazer teatro, no Adelina. O chão precisa estar completamente limpo? Se sim, então da próxima vez passaremos o pano. É função do grupo - penso - prezar por este espaço. Fica combinado de ser nosso ritual de início da aula, caso as condições do lugar não colabore.
Então não nos deitamos no chão: sentamos. Peço para eles fecharem os olhos. Ponho uma música para nós escutarmos - é, como já disse, uma do Yann Tiersen. Do álbum "Good bye, Lenin". Há risinhos e uma conversa paralela - interminável - da Stefani com a Bia: é quase um cochicho, mas sem fim. Toda hora que olho para as duas elas estão conversando, não tem jeito!
Pessoal, agora nós vamos só escutar a música. E isso é muito difícil mesmo, mas não custa tentar, Bia!
A canção acaba, já veio outra e estamos caminhando pelo espaço: aí o e "E se..." vem à tona e preenche a sala com teatralidade. A turma, para esse tipo de proposta, tem se mostrado muito aberta. Vou narrando os acontecimentos e eles materializam tudo nos corpos. Vivemos um momento de "e se fôssemos furacões, folhas secas, redemoinho?" (há diferença entre o furacão e o redemoinho?!). Utilizo os "es-ses" pensados antes da aula. Há uma fera atrás de nós. Ela não pode perceber que estamos caminhando, nem com medo dela. Agora não tem mais jeito, nós precisamos fugir... E fugimos.
No meio da "fuga", trago um outro enunciado: Monique é o carrasco! Começamos então este jogo de pegador e o interrompo quando os primeiros começam a deixar o jogo, por terem sido pegos: voltamos a fugir, sem querer ser percebidos, das feras.
Em seguida, realizo o "Pegador com explosão": é um jogo da Viola Spollin que aprendi com a Gláucia Vandveld, no núcleo de Teatro para educadores, no Galpão Cine Horto. Ele é assim: Há um pegador entre nós. Quando ele pega alguém, acaba explodindo no lugar onde cumpriu sua tarefa! (Como é este explodir do pegador?!) e fica no lugar onde explodiu. O "pegado" se torna o novo pegador e, com o tempo, os explodidos vão se tornando obstáculos para a correria. Eles gostam. Querem repetir. Se tivesse mais gente, seria mais legal. O espaço ficaria mais preenchido com outros obstáculos...
Somos nós sete: eu e os seis. Caminhamos pelo espaço e precisamos ocupá-lo. Provoco: Quanto o nosso corpo precisa ser grande para ocupar o maior espaço possível dessa nossa sala?
me pergunto agora: E para se fazer presente hoje no mundo?! Pra se fazer ouvir?! Quanto de grande a gente precisa ser?!
Prosseguimos: apresento aos meninos o jogo do "Onde", também da Viola Spollin. Falo para eles da possibilidade de ser criar no invisível, sem o auxílio de objetos ou de cenários. Proponho para a turma o seguinte: nos dividirmos entre espectadores e atuantes. No espaço de jogo - palco - o jogador - atuante - precisa, com ações, mostrar qual LUGAR - onde - está. Dou o exemplo: entro em um banheiro e começo a escovar os meus dentes. Os meninos dizem ter entendido. Passo a bola para eles.
O mesmo silêncio de quando perguntei "quem vai levar o caderno" paira sobre a turma. Ninguém quer ir! "Vai, fulano."; "Eu estou sem ideia..."; "Não estou conseguindo pensar em nada..." são frases que eu ouço. Me perguntam: pode dupla? Eu permito. O jogo, por vezes, acontece, mas pouco vivo - meio sem vontade, ou com mais vontade de estar sentado, assistindo. Sou eu que estou cheio de expectativas ou de fato teria de ter puxado/incentivado um pouco mais?
Proponho então um outro jogo: a história em 4 imagens. Inspirado nas últimas histórias das revistinhas da Turma da Mônica (contadas em 3 quadrinhos), peço para que eles pensem em uma situação e a divida em 4 momentos/imagens e mostrem para a turma. Novamente dou o exemplo: COMO UMA MAÇÃ > ME SINTO MAU > CORRO PARA O BANHEIRO > NO BANHEIRO, ME ALIVIO.
Deividson e Monique se arriscam e vão. Com muita resistência, a Stéfany vai também. Mudo o comando: peço para todos caminharem pelo espaço com suas situações "em mente". "Vou bater 4 palmas - anuncio. Na palma 1, vocês fazem a primeira imagem da situação escolhida e assim por diante, ok?"
Nisso uma outra aluna - que me foge agora da memória o nome dela (preciso fazer uma chamada!) - havia chegado. Se dispôs a "entrar" nesse jogo, mas hoje, decididamente, a aula parecia estar sem energia, não queria acontecer. O jogo das "4 imagens" estava murchinho... Eles caminhavam e, em cada palma, mostravam um novo momento congelado de suas situações. Chegamos ao final da proposta. Decidi que não faríamos uma mostra para os colegas - ou seja, cada hora um ir na área de jogo mostrar o seu. Estava com a impressão que nada individual hoje renderia.
Dividi os sete em dois grupos e entreguei os dois livros d'Os gêmeos para eles conhecerem as obras de arte dos irmãos paulistas Gustavo e Otávio Pandolfo. Naquele primeiro momento com os livros era para folhear livremente, apreciando os grafites e instalações registrados naquelas duas obras. Em seguida, fui acrescentando alguns comandos: "tentem memorizar a página com a imagem que mais chamar a atenção de vocês...". Pedi também para terem muito carinho com os dois livros, pois eles pertencem ao nosso amigo Fabrício Trindade.
Pensei em sugerir uma improvisação a partir das imagens, mas mostrar daquele jeito que fiz os livros parecia não ter gerado nenhuma empatia nos sete.Peguntei: "alguma coisa chamou a atenção de vocês" e, com algum custo, a Monique apontou uma obra. Foi aí que alguém perguntou: "Hoje vamos fazer teatro, professor?"
***
Mostraram a cena:
O roteiro dela é:
Duas garotas caminham e de repente são assaltadas por dois assaltantes. Policiais chegam e começam uma troca de tiros com os meliantes. Todos, com exceção de uma das assaltadas, morrem.
Chama a minha atenção principalmente o fato do Deividson ter me pedido para escolher uma música - dentre aquelas que usei hoje - de mistério para a cena. Ele escolheu uma e lá estava ela, fazendo colorindo a sonoplastia do trabalho deles.
Antes de nos despedir, eles me contaram como o Charles havia finalizado a aula anterior. Hoje fizemos uma pequena mudança no "PULAR EM DIAGONAL GRITANDO A PALAVRA ESCOLHIDA PELA TURMA": Como o grupo escolheu duas palavras - VERGONHA e ALEGRIA - nós combinamos o seguinte - atravessaríamos a sala, em diagonal, pulando, enquanto gritávamos ALEGRIA. Voltaríamos para o ponto 0, rodopiando, dizendo VERGONHA.
Chegamos ao fim do encontro.
Tempo mais abafado.
P.S: Pedi para cada um trazer na próxima aula uma música que eles gostassem muito. Uma "Música da vida de vocês... Uma que fale sobre vocês"...
"sei lá, professor"
"é difícil"
"tem de ser escrita?"
Aí eu disse:
"Uma versão escrita e outra pra gente ouvir aqui, juntos".
E então nos despedimos.